sexta-feira, 2 de julho de 2010

HETERONORMATIVIDADE

Segue na sequência um texto longo...que eu e minha turma do pós discutimos em aula... vale a leitura e a reflexão!!
A autora é a Guacira Lopes Louro, uma de nossas professoras na UFRGS e figura muito importante no Brasil quando se trata de estudos de gênero, sexualidade e educação.
Namastê,
Nicole

Heteronormatividade e homofobia

Guacira Lopes Louro/UFRGS

Notas para conferência de abertura do
I Simpósio Paraná-São Paulo de Sexualidade e Educação Sexual,
Araraquara, abril de 2005.


Um diário, escrito no século XIX, é descoberto muitos anos depois. Trata-se das memórias de um jovem hermafrodita que narra suas poucas alegrias e suas muitas tristezas e angústias ao longo da curta vida. Herculine Barbin é inicialmente criada como uma moça, Alexina, no interior de um internato feminino católico e, posteriormente, é reconhecido como sendo um rapaz e se vê obrigado a trocar de sexo. As humilhações e o drama que experimenta neste processo acabam por levá-lo ao suicídio. A história talvez não seja tão extraordinária ou incomum, mas o fato é que as memórias desse jovem acabaram sendo publicadas, já em pleno século XX, precedidas de um texto de Michel Foucault. Apesar de toda a curiosidade que pode cercar o diário de Alexina/Herculine, o que me interessa particularmente explorar, neste momento, é o pequeno prefácio de Foucault, ou, mais precisamente, aproveitar a pergunta inicial que ele faz para também com ela iniciar minha fala. Escreve Foucault: “Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro sexo?” E continua, respondendo em seguida: “Com uma constância que chega às raias da teimosia, as sociedades do ocidente moderno responderam afirmativamente a essa pergunta”.

Neste pequeníssimo trecho, já se colocam duas expressões que me parecem especialmente instigantes: o sexo e a verdade. Sobre elas eu gostaria de provocar vocês. Afinal estamos reunidos num simpósio de Sexualidade e, provavelmente, aqui nos veremos enredados em debates que mobilizam várias perspectivas teóricas – todas a seu modo verdadeiras.

No texto de Foucault, há, por um lado, o encaminhamento de uma resposta à pergunta que propôs: ele indica, de forma categórica, que o sexo, melhor será dizer a sexualidade, se constituiu em uma questão não só importante, mas perturbadora e decisiva para as sociedades ocidentais.

Por outro lado, propõe a questão da verdade. Vale dizer que o filósofo teve o cuidado de destacar graficamente, neste prefácio, o advérbio verdadeiramente e o adjetivo verdadeiro. Evidentemente, não posso afirmar com segurança porque ele fez isso, mas acho razoável supor que ele quisesse nos lembrar que colocava essas expressões sob suspeita.

Seguindo o pensamento de Foucault, poderíamos dizer que uma “verdade” só aparece quando pode aparecer. Em um dado momento, um conjunto de circunstâncias se combina e possibilita que algo seja admitido como verdade. Esse conjunto de circunstâncias está atravessado e ordenado por determinadas relações de poder. Sendo assim, é possível compreender que determinadas relações de poder permitem que determinadas “verdades” (e não outras) apareçam. Daí que os saberes ou os enunciados “verdadeiros” em torno dos quais nós vivemos e com os quais lidamos cotidianamente precisam ser analisados em função das estratégias de poder que os sustentam. Isso vale para as teorias, leis ou regras do passado, mas deve valer, também, para aquelas que hoje abraçamos, para aquelas que nos mobilizam e nas quais apostamos.

É claro que é mais fácil assumir uma postura crítica em relação ao passado. É provável que possamos entender que determinadas estratégias e tecnologias de poder estão articuladas na constituição dos discursos “científicos” antigos; por exemplo, discursos que “comprovavam” que tais e tais sujeitos ou que tais e tais práticas eram sadios ou doentes, positivos ou negativos. Há que admitir que foi e que é assim que se produzem discursos jurídicos, religiosos, educativos, psicológicos os quais mostram ou tornam evidente os sujeitos e as práticas que são bons ou que são maus, integrados ou desintegrados, produtivos ou prejudiciais para o conjunto da sociedade. Determinadas relações e as estratégias de poder se sustentam através desses saberes e “verdades”, elas precisam desses discursos para se tornarem evidentes o que, paradoxalmente, faz com que essas relações de poder se tornem invisíveis. Não há como negar (e isso muitos de nós podemos atestar por experiência própria) que quanto menos for notada ou quanto mais for invisível uma relação de poder mais ela será eficiente.

Sabemos também que, num determinado momento (que, numa perspectiva foucaultiana poderia ser compreendido como o século XIX, talvez mais especialmente a metade final desse século), passou-se a prestar uma especialíssima atenção à definição da sexualidade. A questão da sexualidade tornou-se central para os estados e também para os indivíduos. Na verdade, o processo já vinha se desenrolando há algum tempo, desde o século XVIII, pelo menos: transformações políticas, culturais, sociais e econômicas articuladas ao industrialismo e à revolução burguesa, acompanhadas por uma outra divisão sexual do trabalho e, junto com ela, pela circulação de idéias de caráter feminista, foram constituindo todo um conjunto de condições para que os corpos, a sexualidade e a existência de homens e mulheres fossem significados de outro modo. Laqueur (1990) diz que se construiu, por essa época, um novo corpo sexuado. Mas ele alerta que não seria adequado afirmar que qualquer um desses eventos “provocou a construção desse novo corpo sexuado”, em vez disso, seria importante lembrar que “a reconstrução do corpo é, ela própria, intrínseca a cada um desse desenvolvimentos” (Laqueur, 1990, p. 11).

Este estudioso conta que, até o inicio do século XIX, as sociedades ocidentais tinham um modelo sexual que hierarquizava os sujeitos ao longo de um único eixo, cujo vértice era o masculino. Entendia-se que os corpos de mulheres e de homens diferiam em “graus” de perfeição; a “verdade” era que as mulheres tinham, “dentro de seu corpo”, os mesmo órgãos genitais que os homens tinham externamente. Em outras palavras, afirmava-se, cientificamente, que “as mulheres eram essencialmente homens nos quais uma falta de calor vital – de perfeição – havia resultado na retenção, interna, de estruturas que nos machos eram visíveis” (Laqueur, 1990, p.4). A substituição desse modelo (de um único sexo) pelo modelo de dois sexos opostos, que é o modelo que até hoje prevalece, não foi um processo simples, nem linear. Essa transformação de ordem epistemológica – e também política, é claro – se deu junto com todo aquele conjunto de transformações que mencionei anteriormente. E, por um largo tempo, houve embate e disputa entre esses modelos sexuais.

Nessa nova compreensão da sexualidade passava-se a prestar uma atenção especial aos corpos, às suas estruturas e características materiais e físicas. Antes, a explicação para as formas de relacionamento entre mulheres e homens e para as diferenças percebidas entre eles era buscada na Bíblia, nos textos sagrados; essas diferenças eram, enfim, vinculadas a uma dimensão cósmica mais ampla. O corpo tinha, então, menos importância. Mas agora ele passaria a ter um papel primordial. Como diz Linda Nicholson (2000), o corpo se tornou causa e justificativa das diferenças. O corpo passou a ser aquilo que dá origem às diferenças.

O que temos aqui, então, é a constituição de uma nova episteme, de um novo conjunto de regras ou de formas de compreender e dar sentido ao mundo. Novos saberes, novas verdades são instituídas. Como parte desse contexto – aliás como parte especialmente importante – foram sendo construídas novas formas de representar e dar significado ao homem e à mulher, às suas relações, à sexualidade.Tais mudanças não são nada banais: elas são constituídas e constituintes de outras estratégias e relações de poder.

Como os novos estados nacionais estarão agora, mais do que antes, preocupados em controlar suas populações e garantir sua produtividade, seus governantes vão investir, então, numa série de medidas voltadas para a vida: passam a disciplinar a família e a dar especial atenção à reprodução e às práticas sexuais. É importante prestar atenção em quem, neste contexto, tem autoridade para afirmar a verdade e quem será o alvo preferencial de ação dos governos.

Ao final do século XIX, serão homens, médicos e também filósofos, moralistas e pensadores (das grandes nações da Europa) que vão fazer as mais importantes“descobertas” e definições sobre os corpos de homens e mulheres. Será o seu olhar “autorizado” que irá estabelecer as diferenças relevantes entre sujeitos e práticas sexuais, classificando uns e outros sob o ponto de vista da saúde, da moral e da higiene. Não é de estranhar, pois, que a linguagem e a ótica empregadas em tais definições sejam marcadamente masculinas; que as mulheres sejam concebidas como portadoras de uma sexualidade ambígua, escorregadia e potencialmente perigosa; que os comportamentos das classes média e alta dos grupos brancos das sociedades urbanas ocidentais tenham se constituído na referência para estabelecer o que era ou não apropriado, saudável ou bom. Nascia a sexologia. Inventavam-se tipos sexuais, decidia-se o que era normal ou patológico e esses tipos passavam a ser hierarquizados. Buscava-se, tenazmente, conhecer, explicar, identificar e também classificar, dividir, regrar e disciplinar a sexualidade. Tais discursos, carregados da autoridade da ciência, gozavam do estatuto de verdade e se confrontavam ou se combinavam com os discursos da igreja, da moral e da lei.

É nesse contexto que surge o homossexual e a homossexualidade. Práticas afetivas e sexuais exercidas entre pessoas de mesmo sexo (que sempre existiram, em todas as sociedades) ganham agora uma nova conotação. Não serão mais compreendidas, como eram até então, como um acidente, um pecado eventual, um erro ou uma falta a que qualquer um poderia incorrer, pelo menos potencialmente. Por certo, em muitas sociedades, aqueles que incorriam nessa falha mereciam ser punidos e o perdão lhes era concedido a duras penas (quando era!). No entanto, agora tais práticas passam compreendidas de um modo bem distinto. Entende-se que elas revelam uma verdade oculta do sujeito. O homossexual não era simplesmente um sujeito qualquer que caiu em pecado, ele se constituía num sujeito de outra espécie. Para este tipo de sujeito, haveria que inventar e pôr em execução toda uma seqüência de ações: punitivas ou recuperadoras, de reclusão ou regenerção, de ordem jurídica, religiosa ou educativa.

Tendo sido nomeado o homossexual e a homossexualidade, ou seja, o sujeito e a prática desviantes, tornava-se necessário nomear, também, o sujeito e a prática que lhes haviam servido como referência. O que era “normal” até então não tinha um nome. Era, supostamente, onipresente, evidente por si mesmo e, conseqüentemente (por mais paradoxal que pareça) era invisível. O que até então não precisara ser marcado agora também tinha de ser identificado. Daí o surgimento da expressão heterossexual e heterossexualidade.

Estabelecia-se, a partir daí, o par heterossexualidade/homossexualidade (e também heterossexual/homossexual) como uma oposição fundamental, decisiva e definidora de práticas e sujeitos. Uma oposição que compreende o primeiro elemento como primordial e o segundo como subordinado. Uma oposição que, segundo teóricos contemporâneos, está onipresente em nossas sociedades, marcando saberes, instituições, práticas, valores. Consolidava-se um marco, uma referência mestra para a construção dos sujeitos.

Na perspectiva pós-estruturalista, seria nossa função, como intelectuais, perturbar a aparente solidez desse par binário. Se acompanharmos o que diz Derrida, entenderemos que esses dois elementos estão mutuamente implicados, dependem um do outro para se afirmar, supõem um ao outro. Ainda que, por toda a parte, se afirme a primazia da heterossexualidade, já observamos que, curiosamente, ela se constituiu como a sexualidade-referência depois da instituição da homossexualidade. A heterossexualidade só ganha sentido na medida em que se inventa a homossexualidade. Então, ela depende da homossexualidade para existir. O mesmo pode ser dito em relação ao sujeito heterossexual: sua definição carrega a negação de seu oposto. Ao dizer: eu sou heterossexual, um homem ou uma mulher acaba, invariavelmente, por ter de recorrer a algumas características ou marcas atribuídas ao homossexual, na medida em que ele ou ela precisa afirmar, também, o que não é. Do outro lado do par o movimento será o mesmo: a homossexualidade também precisa da heterossexualidade para dizer de si. Há uma reciprocidade nesse processo. A dicotomia se sustenta numa única lógica.

Mas a manutenção dessas posições hierarquizadas não acontece sem um investimento continuado e repetitivo. Para garantir o privilégio da heterossexualidade – seu status de normalidade e, o que ainda é mais forte, seu caráter de naturalidade – são engendradas múltiplas estratégias nas mais distintas instâncias (na família, na escola, na igreja, na medicina, na mídia, na lei). Através de estratégias e táticas aparentes ou sutis reafirma-se o principio de que os seres humanos nascem como macho ou fêmea e que seu sexo – definido sem hesitação em uma dessas duas categorias – vai indicar um de dois gêneros possíveis – masculino ou feminino – e conduzirá a uma única forma normal de desejo, que é o desejo pelo sujeito de sexo/gênero oposto ao seu.

Esse alinhamento (entre sexo-gênero-sexualidade) dá sustentação ao processo de heteronormatividade, ou seja, à produção e reiteração compulsória da norma heterossexual. Supõe-se, dentro dessa lógica, que todas pessoas sejam (ou devam ser) heterossexuais – daí que os sistemas de saúde ou de educação, o jurídico ou o mediático sejam construídos à imagem e semelhança desses sujeitos. São esses sujeitos que estão plenamente qualificados para usufruir desses sistemas ou de seus serviços e para receber os benefícios do estado. Os outros, que fogem à norma, poderão, na melhor das hipóteses, ser reeducados, reformados (se for adotada uma ótica de tolerância e complacência) ou serão relegados a um segundo plano (tendo de se contentar com recursos alternativos, restritivos, inferiores), quando não são simplesmente excluídos, ignorados ou mesmo punidos. Ainda que se reconheça tudo isso, a atitude mais freqüente é a desatenção ou a conformação. A heteronormatividade só é reconhecida como um processo social, ou seja, como algo que é fabricado, produzido, reiterado e somente passa a ser problematizada a partir da ação de intelectuais ligados aos estudos de sexualidade, especialmente aos estudos gays e lésbicos e à teoria queer.

Stevi Jackson (2005) diz que a grande utilidade do conceito de heteronormatividade “consiste em poder nos alertar para as formas pelas quais a norma heterossexual é tramada no tecido social de nossas vidas numa série de níveis, do institucional ao cotidiano” e que isso se dá de forma consistente, ainda que, por vezes, seus efeitos sejam contraditórios. Ele sugere, também, que se pense nas intersecções entre heterossexualidade e gênero, afirmando que essas intersecções são complexas.

O processo de reiteração da heterossexualidade adquire consistência (e também invisibilidade) exatamente porque é empreendido de forma continuada e constante (e também, muitas vezes, sutil) pelas mais diversas instâncias sociais. Os discursos mais autorizados nas sociedades contemporâneas repetem a norma regulatória que supõe um alinhamento entre sexo-gênero-sexualidade. Por certo circulam também (e cada vez com mais força) discursos divergentes e práticas subversivas dessa norma, produzidos a partir das posições subordinadas. Os movimentos organizados das chamadas “minorias sexuais” têm conseguido, nas últimas décadas, expressivos avanços no campo midiático ou mesmo jurídico, com alguns efeitos, também, no campo que atuamos, o da educação. Há, contudo, sérios limites nesse processo, os quais pretendo indicar a seguir. Antes, me parece importante enfatizar dois pontos:

Primeiro, que a norma precisa ser reiterada, constantemente. Não há nenhuma garantia que a heterossexualidade aconteça naturalmente, pois, se isso fosse seguro, não seriam feitos tantos esforços para afirmar e reafirmar essa forma de sexualidade. Segundo, que a norma pode e é subvertida. Todos os dias, em todos os espaços, homens e mulheres desafiam esta norma. Alguns sujeitos embaralham códigos de gêneros ou atravessam suas fronteiras; alguns articulam de formas distintas sexo-gênero-sexualidade; outros ainda criticam a norma através da paródia ou da ironia. A heteronormatividade se constitui, portanto, num empreendimento cultural que, como qualquer outro, implica em disputa política.

Outra idéia sugestiva é a de que há, provavelmente, especiais intersecções entre heterossexualidade e gênero. Temos de reconhecer que sexualidade e gênero estão profundamente articulados, talvez mesmo, muito freqüentemente, se mostrem confundidos. Experimentações empreendidas no “território” da sexualidade acabam por ter efeitos no âmbito do gênero. Basta lembrar quão freqüentemente se atribui a um homem homossexual a qualificação de “mulherzinha” ou se supõe que uma mulher lésbica seja uma mulher-macho. A transgressão da norma heterossexual não afeta apenas a identidade sexual do sujeito mas é, muitas vezes, representada como uma “perda” do seu gênero “original”. Penso que, em nossa cultura, esse movimento, ou seja, o processo de heteronormatividade seja exercido de modo mais intenso ou mais visível em relação ao gênero masculino. Como educadoras, observamos que, desde os primeiros anos de infância, os meninos são alvo de uma especialíssima atenção na construção de uma sexualidade heterossexual. As práticas afetivas entre meninas e mulheres parecem ter, em nossa cultura, um leque de expressões mais amplo do que aquele admitido para garotos e homens. A intimidade cultivada nas relações de amizade entre mulheres e a expressão da afetividade por proximidade e toque físico podem borrar possíveis divisórias entre essas relações de amizade e relações amorosas e sexuais. Daí que a homossexualidade feminina pode se constituir de forma mais invisível. Abraços, beijos, mãos dadas, a atitude de “abrir o coração” para a amiga/parceira são práticas comuns do gênero feminino em nossa cultura. Essas mesmas práticas não são, contudo, estimuladas entre os meninos ou entre os homens. A “camaradagem” masculina tem outras formas de manifestação: poucas vezes é marcada pela troca de confidências (muito comum entre as mulheres); e o contato físico ainda que plenamente praticado em algumas situações (nos esportes, como no futebol, por exemplo) se dá cercado de maiores restrições entre eles do que entre elas (não só em termos das áreas do corpo que podem ser tocadas como do tipo de toque que visto como adequado).

O processo de heteronormatividade não apenas se torna mais visível em sua ação sobre os sujeitos masculinos mas aparece aí, mais freqüentemente, associado com a homofobia. Pela lógica dicotômica, os discursos e as práticas que constituem o processo de masculinização implicam na negação de práticas ou características referidas ao gênero feminino e essa negação se expressa, muitas vezes, por uma intensa rejeição ou repulsa dessas práticas e marcas femininas (o que caracterizaria, no limite, a misoginia). É possível observar, ainda, que, na construção da identidade de gênero masculina, a centralidade da sexualidade tem sido mais reiterada, culturalmente, do que na construção da identidade feminina (pelo menos em sociedades como a nossa). Uma vida sexual ativa – leia-se uma vida heterossexual ativa – parece ser um elemento recorrente na representação da masculinidade (não acontecendo o mesmo em relação à feminilidade). Vale lembrar, por exemplo, o quanto a impotência sexual é representada, em nossa cultura, como uma grave ameaça à identidade masculina. Podemos dizer que os discursos e as práticas envolvidas no processo de masculinização se vêem inundados pela preocupação em afastar ou negar qualquer vestígio de desejo que não corresponda a norma sancionada. O medo e a aversão pela homossexualidade são cultivados em associação à heterossexualidade.

Evidentemente, tudo isso é cultural, histórico, portanto dinâmico, ou seja, passível de transformações. Antes, afirmei que, ao lado dos discursos que reiteram a norma heterossexual, circulam também discursos divergentes e práticas subversivas, e parece notório que esses processos de subversão e desafio da norma vêm se tornando, contemporaneamente, cada vez mais visíveis. Sugeri, contudo que há limites nesse processo e gostaria de fazer um breve comentário a respeito.

A premissa sexo-gênero-sexualidade sustenta-se numa lógica que supõe o sexo como “natural”, entendendo este natural como “dado”. Ora, dentro desta lógica, o caráter imutável, a-histórico e binário do sexo impõe limites à concepção de gênero e de sexualidade. Na medida em que se equaciona a natureza (ou o que é “natural”) com a heterossexualidade, isto é, com o desejo pelo sexo/gênero oposto, se passa a supô-la como a forma compulsória de sexualidade. Dentro desta lógica, os sujeitos que, por qualquer razão ou circunstância, escapam da norma e promovem uma descontinuidade na seqüência serão tomados como “minoria” e serão colocados à margem tanto das preocupações da escola, como da justiça ou da sociedade em geral. Paradoxalmente, esses sujeitos “marginalizados” continuam necessários, pois servem para circunscrever os contornos daqueles que são normais e que, de fato, se constituem nos sujeitos que importam. O limite do “pensável”, no campo dos gêneros e da sexualidade, fica circunscrito, pois, aos contornos dessa sequência “normal”. Como a lógica é binária, há que admitir a existência de um pólo desvalorizado – um grupo designado como minoritário que pode ser tolerado como desviante ou diferente; contudo, é insuportável pensar em múltiplas sexualidades. A idéia de multiplicidade escapa da lógica que rege toda essa questão. E acho que aqui se inscreve um importante limite desse processo epistemológico. Poderíamos perguntar: onde ficam os sujeitos que não ocupam nenhum dos dois lados dessa polaridade? Como se representa, o que se “faz” com os sujeitos bissexuais, transgêneros, travestis, com as drags?

A episteme dominante não dá conta da ambigüidade e do atravessamento das fronteiras de gênero e de sexualidade. A lógica binária não permite pensar o que escapa do dualismo. Não tenho qualquer pretensão de sugerir uma resposta para esse impasse. Parece-me, no entanto, sugestivo encerrar esta fala que, privilegiadamente, abre este seminário, propondo a ousadia para problematizar o estatuto de “verdade” da dicotomia heterossexualidade/homossexualidade como categoria explicativa da sociedade contemporânea. Será possível descontruir essse binarismo? Demonstrar suas formas de produção? Estranhar sua intrincada presença na intimidade das instituições sociais, nos processos de produção do conhecimento e das relações entre os sujeitos?